Por João Gabriel Tréz
Sessão 4 – Morro do Cemitério, Pássaro Memória e Kila & Mauna.
No texto de apresentação de Utopia Pertence a Nós, a curadoria compartilha que acredita “que o cinema é um espaço potente para sonhar novos mundos” e coloca a mostra como “um convite para compartilharmos esses sonhos”.
Em uma cena de “Morro do Cemitério”, de Rodrigo R. Meireles, uma coleção de televisões, rolos de filme, câmeras e moviolas antigas amontoadas nas estantes da espécie de casa-sucata-antiquário-ateliê de Paulinho Demolidor é apresentada como “Museu da Imagem”.
Em uma sequência-chave de “Pássaro Memória”, de Leonardo Martinelli, a protagonista, interpretada por Ayla Gabriela, afirma assertiva: “Eu não gosto do realismo”.
Em um monólogo revelador de “Kila & Mauna”, de Ella Monstra, os vídeos com toques idílicos de momentos de amizade entre as personagens-título filmados por uma terceira amiga são descritos por esta como “pedaços que eu despreguei da realidade”.
“Lembra quando a Triz falava que ia transformar aqueles vídeos que a gente fazia num filme?”, rememora Kila a Mauna em um momento de pausa da aventura na qual as duas se lançaram, em busca de encontrar a amiga — desaparecida na visão de uma, fugida na visão da outra.
Inseridas em momentos pontuais de “Kila & Mauna”, as imagens da handycam captadas por Triz trazem outra textura, literal e simbólica, diferindo-se daquela dos registros do percurso das protagonistas. Se este é mais árido, marcado por elementos de distopia, os registros antigos emanam calmaria, acolhimento, cuidado e cura.
Apesar de feitos em um tempo anterior àquele no qual acompanhamos as protagonistas, os registros da filmadora carregam em si um poder reparador no agora elaborado pelo curta. As forças da imagem, da criação dela e, em especial, da imaginação são elementos que despontam no conjunto de filmes da sessão 4.
Em “Morro do Cemitério”, o rapper Wallace passa por um processo de luto “cruel, carrasco”, enquanto precisa se equilibrar entre sentir e tentar sobreviver e produzir. Ainda no início da obra, o formato horizontal reduz-se ao de um vídeo selfie do protagonista, mais verticalizado. É naquele espaço reduzido de imagem que ele se abre minimamente sobre os sentimentos.
“Vou passar aqui pra desabafar mesmo, entendeu?”, dirige-se a um interlocutor não aparente ou definido, olhando diretamente à câmera — logo, também a quem assiste ao filme — e reconhecendo: “Eu tenho postado umas coisas aí nas minhas redes fingindo que eu tô bem, mas eu não tô nada bem, não, cara”.
Na sequência do vídeo, um novo dia nasce e Wallace é acordado pela amiga Weida. “Ô de casa, pode entrar? Bora levantar daí (…), vamos limpar o terreiro, arrumar a sua horta”, convida. No trato com a terra, na retirada de lixo e ervas daninhas, o cuidado e a cura se avizinham. Em sequência posterior, o toque de Weida ao pentear os cabelos de Wallace é outro elemento de zelo e intimidade.
Diferentemente de “Morro do Cemitério” e “Kila & Mauna”, “Pássaro Memória” traz as forças de criação e imaginação nas próprias imagens que o constituem: é a forma do filme que assume o citado “poder reparador” das imagens. A criação se dá no tecido da obra em si.
No curta, a protagonista Lua busca pelas ruas o pássaro do qual cuidava, de nome Memória, que um dia voou de casa e não voltou. Na também já citada sequência-chave do filme, a mulher recebe a ajuda de um homem que diz ter visto um pássaro parecido onde trabalhava.
Na conversa, ela explica que Memória lembra mais de sons e que, quando ela assistia a filmes musicais, o pássaro assobiava as músicas por dias. Ao interlocutor, a ideia de ver obras do gênero não fazia sentido.
“Parece estranho pensar em gente saindo por aí dançando. Não é muito realista, né?”, diz o rapaz. É, então, que Lua afirma a negação do realismo. “Gosto disso. Dos momentos que a personagem tá andando pela cidade e, quase sem você perceber, o andar se transforma numa dança”, inicia.
“As pessoas seguem normais no fundo, com seus afazeres. Mas há uma virada, uma mágica, onde toda a cidade deixa o cotidiano de lado e começam a dançar juntos. Ou ainda as vezes em que as pessoas estão em um lugar e um gesto te leva pra um outro lugar e tempo mais bonito, como o soprar de um fósforo. Não sei. Eu não gosto do realismo. Prefiro me imaginar assim. Você não?”, finaliza o discurso.
As situações descritas por Lua na fala são, elas mesmas, espelhadas no próprio filme, mesmo antes da sequência destacada. A cena inicial de “Pássaro Memória”, por exemplo, é composta por um plano fixo que se alonga por dois minutos no qual o centro de uma cidade é aos poucos e coreografadamente ocupado, ao fundo, por pessoas com os próprios afazeres.
Em dado momento, a protagonista surge também no fundo do plano, parecendo estar buscando por algo — o Pássaro Memória, ficamos sabendo depois. Ao ficar em primeiro plano, ela olha para cima e assobia, chamando pelo animal. É um esboço da “virada”, da “mágica” descrita por ela depois. As pessoas param seus afazeres e, em movimento sincronizado, olham para Lua.
No entanto, não é ali que todos deixam “o cotidiano de lado” e começam a dançar juntos, como na fantasia da protagonista. A aridez da cidade ainda se impõe. Aos poucos, porém, ela vai abrindo espaço para as possibilidades de brincar que a ficção traz consigo. Então, gestos como um assobio, o estalar de dedos e o soprar de um fósforo vão, sim, criando lugares e tempos mais bonitos.
Lugares e tempos nestes em que, por exemplo, gente sai por aí dançando e o andar de uma personagem se transforma em dança. A mágica se imbrica no concreto cotidiano.
“Prefiro me imaginar assim”, diz Lua ao rapaz. “Você não?”. A pergunta ecoa, de alguma maneira, o próprio convite da mostra. Sendo o cinema um “espaço potente para sonhar novos mundos”, há filmes, como estes “Morro do Cemitério”, “Pássaro Memória” e “Kila & Mauna”, que se implicam em evidenciar a partilha destes sonhos.