Crítica Sessão 1 – Sonho e Vida

Por João Gabriel Tréz

Sessão 1 – Manual da Pós-Verdade, Justa Causa e Viventes.

Há um plano em “Viventes”, de Fabrício Basílio, que é quase totalmente preenchido pela pasta na qual o protagonista Paulinho guardou a carteira de trabalho e o currículo, impresso graças à ajuda da avó morta, que conseguiu ligar com um sopro o computador antigo, encontrado por ela na casa da qual prometeu não sair, literalmente, nem morta.

A situação descrita acima não somente aproxima, mas funde ideias de fantasia e realidade em seus elementos. O plano destacado é composto também pelas mãos do protagonista, que seguram a pasta — um toque que evidencia a concretude não só dela ou do currículo em si, mas de todo o movimento que culminou naquele plano.

Como um conjunto, a sessão 1 de Utopia Pertence a Nós passeia entre objetividades e subjetividades ao longo dos três filmes que a compõem. “Manual da Pós-Verdade”, de Thiago Foresti, “Justa Causa – Motoboys Kamikazes”, de Bira GF., e o citado “Viventes” desenvolvem uma proposta de afirmação imaginativa especialmente debruçada na ideia de trabalho e na ambivalência sonho/vida.

O primeiro acompanha o editor-chefe de um jornal impresso — cujo nome, não por acaso, é “Gazeta do Ontem” — que se vê em uma crise na qual não consegue distinguir entre o que existe e não existe, seja na redação — desafiado por escolhas próprias do trabalho — ou em um consultório de terapia, no qual é atendido por um robô que age como voz de pretensa razão.

De partida, Sérgio confessa: “Desde o último sonho eu não sei mais se acordei”. “Por que a realidade é tão importante assim pra você?”, questiona o robô-analista. “Você não devia perder tempo com a realidade, a verdade morreu”, sentencia uma colega de empresa. “A única coisa que quero é buscar a verdade”, sustenta o protagonista.

Se a resolução da questão do personagem aponta para um gesto de busca por uma pretensa utopia, quase tudo em “Manual da Pós-Verdade” emana distopia e caos, do “porco-bomba” candidato à presidência do País, que ao menos “fala o que pensa”, ao negócio especializado em criar notícias falsas sem compromisso algum com fatos. A Sérgio, é costumeira a sugestão para “tirar umas férias”.

Apesar do verniz distópico da produção, personagens e situações dispostas nela são facilmente identificáveis como espécies de reflexos de personagens e situações da nossa realidade — e nem cabe dizê-los como caricaturais, uma vez que se assemelham em níveis primários com os pares factuais.

Esse paralelo direto da ficção com contextos do nosso mundo é também presente em “Justa Causa – Motoboys Kamikazes”. A dualidade confusa entre sonho e realidade de “Manual” abre espaço para uma abordagem plenamente imersa no distópico. Não há fronteira, entre, mas sim uma realidade que exacerba/espelha situações cotidianas ocorridas com entregadoras e entregadores de comida por aplicativo.

A colisão de múltiplas técnicas e estéticas de ilustração e animação evidencia o espírito enérgico da própria obra, que em conteúdo também estabelece pares diretos com elementos reconhecíveis do real: uma das lideranças do movimento de motoboys kamikazes se chama “Grilo”, sobre quem parte da mídia hegemônica logo trata de espalhar mentiras enquanto celebra o crescimento do aplicativo Kungfood.

A partir de um trabalho de estilização, as demandas e questões cotidianas de quem “tá passando fome enquanto leva comida nas costas” são retratadas como perseguições entre veículos voadores e batalhas com armaduras sobre-humanas em meio às ruas de Kronometropolis. Numa caricatura fronteiriça à realidade, o cliente que considera 15 minutos uma “demora” até a comida chegar é o mesmo que reclama de ter que descer para pegar o pedido.

Da dualidade de “Manual” à imersão no pesadelo do real em “Justa Causa”, chega-se, então, a “Viventes”, que propõe não “um ou outro”, mas ambos. No curta que fecha a sessão, “sonho” e “vida” não são lados opostos de uma mesma moeda, uma proposição de binarismo, mas sim coexistentes, ambivalentes.

O pensamento curatorial parece, então, apontar não para uma “linha” cartesiana de “evolução” ou “desenvolvimento” entre os filmes, mas sim ressaltar um jogo de equilíbrio e desequilíbrio entre as ideias de real e irreal, concreto e abstrato.

Também não por acaso, a sessão se encerra com a sequência final de “Viventes” na qual o protagonista descreve um sonho que teve, no qual situações irreais despontam de um contexto de elementos concretos e cotidianos: detentora de uma receita especial de pão cobiçada por um trio de homens ricos, a dona de uma padaria tenta proteger o segredo… se transformando em um pão.

Sonho e vida, vida e sonho. Sonho é vida, vida é sonho.

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