Por Grenda Costa
Sessão 2 – Reino da Encantaria, Ana Rúbia, Geruzinho, Carne Traída e A velhice ilumina o vento.
Eu fui criada em frente a uma TV de tubo de 14 polegadas assistindo a não sei quantos filmes da Sessão da Tarde, Cinema em casa, Supercine e afins. Naqueles filmes, quase todos estadunidenses, as imagens que me eram oferecidas eram, em sua maioria, do herói que deixa seu lugar de origem para perseguir uma aventura. E ele só pode cumprir sua jornada se for embora, deixar tudo para trás. Por outro lado, em narrativas onde o retorno era a jornada, o fracasso de voltar “atrás” perseguia o personagem até o fim. As coisas não deram nada certo na cidade grande e agora ele precisaria retornar para se reencontrar. O progresso era sempre uma linha reta ascendente. Ele derruba tudo por onde passa. Para mim, habitante do Sul global, um copo que não se encaixa no dito ideal homem-branco-hétero-cis, não me cabia completamente essa jornada estadunidense. Voltar para casa nem sempre parecia ser sinônimo de fracasso. Até porque para nós que nascemos num lugar onde cada um tem “o seu interior”, o retorno para a cidade de origem faz parte do nosso dia-a-dia. Assim, só por esse movimento nós já estaríamos “traindo o pacto” porque ele não nos cabe. Essa sessão traz filmes que, para mim de uma forma ou outra, vão discutir exatamente isso. Como criar lugares de existência no retorno ou na permanência.
Já no primeiro filme, “Reino da Encanteria”, o retorno para a aldeia encontra resistência no filho, mas para a mãe parece ser algo natural e bem recebido pelos que ficaram. O processo de retomada das terras convida para o entendimento do protagonista da sua ancestralidade. O encontro com os espíritos nas matas culmina num abraço de vó. Já a personagem de “Carne Traída” tem dúvidas sobre o seu retorno para casa. Não sabe se deveria voltar, mas agora, num barco no meio de um rio e envolta de devaneios, não existe outra opção. “Trair o pacto” é repetido por ela depois de ouvir a frase de alguém com quem conversa. Fazer as pazes com o retorno pode ser a única maneira de seguir em frente.
Diferente dos filmes anteriores, “Geruzinho” nos convida a uma volta não física, mas no tempo. O filme fala da origem e (r)existência do grupo Descidão dos quilombolas. Criado pelos irmãos/personagens, o grupo se inicia de forma aparentemente despretensiosa, mas se torna momento e lugar de celebração e preservação da tradição negra da batucada. A realizadora escolhe aqui narrar entrelaçando a história do grupo à história dos protagonistas, a forma como cada um contribuiu no início e o que faz agora, bem como a maneira como suas distintas personalidades se juntam para formar o que o grupo é. Isso se materializa em forma de retratos filmados, ora individuais, ora coletivos. O painel de retratos estampado na sede do grupo mostrado no início do filme resume sobre o que vai se falar: de sorrisos, coletividade, festa, música, celebração. Não há tempo ruim. Nunca houve.
Assim como para dona Valda, protagonista de “A velhice ilumina o vento”, filme que encerra a sessão. O curta traz toda a alegria e sabedoria que a velhice pode proporcionar em forma de personagem. Dona Valda sabe exatamente o que quer e não deita pra ninguém. Sejam filhos, parceiros ou homens mal-educados no meio da rua. Mesmo com os percalços da vida, e nós temos que falar deles também, ela escolhe ser feliz. Porque não existe outra escolha. É muito bonito ver todas as imagens propostas e produzidas aqui porque elas vão na contracorrente do que se escolhe representar na maioria dos produtos audiovisuais quando se trata da velhice negra. O filme cria seu micro-universo utópico, mas não quer dizer que esses micro-universos não existam por aí. A realidade é a maior das fontes de ficção.
O que nos leva ao coração dessa sessão na minha opinião. “Ana Rúbia” para mim define o tom dessa sessão e junta todos os filmes. Não há nada mais utópico e talvez fantasioso do que uma travesti não-branca lançando um livro sobre experiências de crianças travestis nas escolas numa roda de conversa em um salão paroquial de uma igreja católica e, no fim, sendo fotografada com dois padres por uma senhorinha de cabelos brancos, máscara no rosto e celular com capa/carteira. Porém, isso é um documentário. E, por mais que entendamos que o documentário não representa a realidade em si, essa cena é um registro de algo que aconteceu. Algo que não foi escrito previamente. Ana Rúbia não só é acolhida num espaço que para a maioria das pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ seria rechaçada, como ela tem voz neste lugar. Além disso, ela tem agência sobre a escolha de sua própria religião, mesmo sendo quem é. Para nós da comunidade, religião é quase sempre um assunto espinhoso. Nós sempre acabamos seguindo e acreditando no que nos é permitido seguir ou acreditar. Essa cena colabora com o restante do filme que mostra uma pessoa travesti vivendo. Andando de moto, encontrando com os amigos, convivendo com os pais. Coisas aparentemente simples, mas que para esse corpo específico no tempo e no lugar que vivemos, é revolucionário.
Em outro momento do filme, numa outra ocasião de lançamento do livro, uma pessoa fala que o livro de Ana Rúbia é um gesto de “resistência ao esquecimento”. Essa frase resume para mim o motivo desses filmes estarem juntos nessa sessão. E, provavelmente, o motivo pelo qual ainda vale a pena contar e ouvir novas histórias. Todos eles são retratos doces da memória. Criações de pequenas utopias encontradas em lugares familiares.